14/12/2017
Na tentativa de contornar os efeitos da crise, uma das atitudes mais drásticas adotadas pelo governo federal foi o corte, em março deste ano, de mais de 42 bilhões de reais no orçamento público. No caso do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, a decisão resultou na redução de 44% da verba de 2017, caindo de 6 bilhões de reais para 3,36 bilhões.
Considerada um golpe para a produção científica nacional, a medida vem sendo criticada pela classe acadêmica — dentro e fora do país. No fim de setembro, uma carta assinada por 23 laureados pelo Prêmio Nobel de países como Estados Unidos, Suécia e França foi enviada ao presidente Michel Temer.
O documento fazia um apelo: que o orçamento fosse revisto, sob pena de comprometer o futuro do Brasil. Não só não houve resposta oficial, como o Projeto de Lei Orçamentária Anual enviado ao Congresso afiou ainda mais o facão. Em 2018, haverá corte adicional de 15,5%. Para piorar, a verba será dividida com a área de Comunicações, já que foi realizada a fusão dos dois ministérios. “Será a morte da ciência no país”, diz Duilia de Mello, astrofísica brasileira, vice-reitora da Universidade Católica de Washington e colaboradora de pesquisas na Nasa, nos Estados Unidos. “Sociedade que não investe em conhecimento é burra”, afirma ela, uma das mais respeitadas cientistas oriundas do Brasil.
São muitos os efeitos colaterais do talho no orçamento. Como o país integra diversos projetos internacionais, a queda na verba poderá significar o calote em consórcios como os mantidos com o observatório Gemini e com o telescópio Soar, que ficam nos Estados Unidos e no Chile, respectivamente, e são essenciais para a astronomia brasileira.
Outro exemplo de parceria importante que pode ser afetada é o da torre Atto, um projeto em conjunto com a Alemanha para entender o papel da Amazônia no clima do planeta. Enquanto o país europeu tem cerca de 50 milhões de reais reservados para financiar pesquisadores na Atto nos próximos três anos, o Brasil não tem recursos nem para usar a estrutura, que recebeu um aporte nacional de 13 milhões de reais em sua construção.
O corte contraria uma tendência histórica. “Desde 1950 tivemos apoio continuado à ciência no Brasil”, diz Luiz Davidovich, físico, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente da Associação Brasileira de Cientistas. “E os resultados sempre foram favoráveis à economia.” Ele lista, entre as contribuições científicas, avanços na área de agricultura, hoje uma potência, e a descoberta do pré-sal, que responde atualmente por cerca de metade do petróleo produzido no país. Ou seja, enquanto nações como Coreia do Sul e China alcançam recordes no investimento em ciência e tecnologia, o Brasil corre o risco de comprometer ainda mais sua competitividade.
Carreira acadêmica
Nesse cenário difícil, os principais prejudicados são os profissionais que trabalham para o setor público. Muitos não sabem se terão o salário honrado e, muito menos, o emprego garantido no ano que vem.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) informa, por exemplo, que, por causa dos contingenciamentos, os cerca de 100 000 bolsistas poderão ficar sem o auxílio. São afetados também todos os institutos de pesquisa apoiados pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), empresa pública ligada ao Ministério da Ciência. “A posição do governo compromete a carreira de milhares de profissionais e estudantes da área”, afirma o físico brasileiro Marcelo Gleiser, pesquisador da renomada Dartmouth College, em Hanover, nos Estados Unidos.
O paleontólogo Marcelo Fernandes, de 48 anos, professor e pesquisador na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior paulista, é um dos muitos cientistas que passaram a conviver com incertezas e dificuldades diárias — pelo menos 19 institutos podem fechar as portas. Entre as preocupações atuais de Marcelo estão o pagamento da conta de luz e a duração de estoque de produtos de limpeza e higiene para o prédio da Universidade Federal de São Carlos, onde trabalha. “Falta recurso até para manter coleções científicas.”
Nilson Gabas Júnior, diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi, de Belém, centro que faz pesquisas sobre biodiversidade e genética, surpreendeu-se ao receber duas cartas, assinadas por diretores dos 12 maiores museus de história natural do mundo e pelos presidentes da Aliança de Coleções de História Natural e da Sociedade para a Preservação de Coleções de História Natural, demonstrando preocupação com o futuro da instituição.
O museu, que mantém em seu quadro 230 pessoas, está em estado crítico. A maior coleção de tecido de material genético de árvores da América Latina, abrigada ali, corre sério risco de deterioração. Como o equipamento para conservar o material está sem manutenção, congeladores domésticos são a alternativa — mas estão longe do ideal. “Temos pesquisas em andamento que usam essa coleção para descobrir novos princípios ativos para remédios”, diz Nilson.
Iniciativa privada
Após toda a repercussão negativa, 500 milhões de reais foram conseguidos em negociações do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. “Tentamos reforçar a importância do setor, um dos pilares do desenvolvimento, junto com o governo”, diz Alvaro Prata, secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação, que trabalha com o ministro responsável pela pasta, Gilberto Kassab. Para Alvaro, a expectativa é que, com a recuperação da economia, o orçamento ganhe musculatura. Os esforços, segundo ele, também vão no sentido de aumentar a participação privada (o ministério tenta apressar a assinatura pelo presidente Temer do Marco Legal da Ciência e Tecnologia, documento que regulamenta a interação entre o setor público e o privado no financiamento de pesquisas).
Essa vem sendo a saída de uma das maiores fundações de apoio à pesquisa do país, a Fapesp. Embora não tenha sofrido impacto direto da redução da verba federal (por lei, ela recebe 1% da receita de impostos do estado de São Paulo), a instituição se antecipou e promoveu a abertura de centros de pesquisa ligados a empresas como Shell e Grupo São Martinho.
Entre 2015 e 2016, foram inaugurados cinco núcleos, e a expectativa é de mais 11 até fevereiro de 2018. A cada real investido pela Fapesp, 1 real é colocado pela companhia parceira. A Fapesp também mantém o programa Pesquisa Inovadora em Pequenas Empresas, que financia a pesquisa em startups. “Isso gera oportunidades para os profissionais”, diz Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da fundação, de São Paulo. O mercado para pesquisadores na iniciativa privada, no entanto, ainda é reduzido.
No Brasil, cerca de 60% da produção é bancada pelo governo. “Em comparação a países como Coreia do Sul e Japão, os números são fracos”, diz Luiz Mello, vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei), de São Paulo. Segundo André Rauen, técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de Brasília, ainda não houve uma mudança significativa no comportamento empresarial em relação ao investimento em ciência e tecnologia. Como motivos, ele cita o ambiente de negócios complexo e a dependência tecnológica das matrizes.
Mas a participação privada cresce. Prova disso são os centros de pesquisa e desenvolvimento que grandes companhias estão inaugurando Brasil afora. Nos últimos dois anos, o Google abriu um em Belo Horizonte; a Johnson&Johnson, em São José dos Campos (SP); e a Avon, em São Paulo. São apenas alguns exemplos. A Rhodia, indústria química do grupo Solvay, da Bélgica, tem no Brasil seu maior braço de pesquisas no mundo. Há quatro anos, ela também mantém uma parceria com o CNPq para financiar projetos de cientistas na empresa. Desde o começo do programa, foram cerca de 50 contratados. “A Solvay tem 12 grandes áreas de negócios, e no Brasil desenvolvemos pesquisa para seis delas”, diz Gabriel Gorescu, diretor de pesquisa e desenvolvimento da Rhodia em Paulínia (SP). Entre os contratados para os laboratórios estão engenheiros químicos, biólogos, físicos de materiais e farmacêuticos. “Hoje em dia, P&D é essencial para organizações que querem se manter competitivas. Isso é positivo para quem trabalha com ciência”, diz Raphael Falcão, diretor da Hays, empresa de recrutamento, do Rio de Janeiro.
Apesar da necessidade de mais investimento privado, especialistas fazem um alerta: não é possível nem desejável que toda a pesquisa seja financiada sem participação pública. Afinal, o interesse das companhias é financeiro. Estudos arriscados, demorados e sem objetivo de lucro, mas essenciais para a sociedade, precisam ser bancados pelo poder público. Além disso, a própria indústria depende da geração de conhecimento. Se o Brasil deixa de ter gente qualificada, empresas grandes abandonam o país. “Com o setor de ciência nebuloso, outros locais se tornam mais atraentes”, diz Rannison Silva, gerente de negócios da Robert Half, empresa de recrutamento, do Rio de Janeiro. Nesse jogo difícil, o Brasil perde competitividade; e seus profissionais, oportunidades.
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