Enquanto os cientistas brasileiros se preparavam para uma eventual epidemia de chikungunya e desenvolviam métodos para diagnosticar rapidamente a doença, considerada altamente debilitante, o vírus Zika até então visto como benigno e causador de uma espécie de dengue light foi se espalhando no país de forma quase despercebida. Somente quando veio à tona sua possível associação com os crescentes casos de microcefalia na região Nordeste, em 2015, as atenções do país e do mundo se voltaram ao patógeno originário da Floresta de Zika, em Uganda. O fato de o Brasil ter sido surpreendido por essa epidemia pode ter ao menos um aspecto positivo: a criação de mecanismos para agilizar o financiamento de pesquisas científicas no país. A avaliação foi feita pelo professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) Paolo Zanotto, que no último mês de dezembro ajudou a articular a chamada Rede Zika, uma força-tarefa para pesquisar e combater o vírus no Estado de São Paulo. Segundo Zanotto, quando a FAPESP, em dezembro de 2015, aprovou em questão de dias aditivos para projetos em andamento de forma que parte das atividades fosse redirecionada para responder questões emergenciais relacionadas com a epidemia de Zika (Leia mais em: http://agencia.fapesp.br/fapesp_aprova_recursos_adicionais_para_pesquisas_sobre_o_zika/22671/ ) criou uma reação em cadeia em outros agentes indutores de pesquisa no Brasil. A Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] viu o que a FAPESP fez ao aprovar rapidamente os aditivos para projetos já vigentes, o que encurta muito a velocidade de indução, irrigando com recursos o que precisa ser irrigado, e está buscando agilizar o processo. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) acompanhou esse processo e quer fazer o mesmo, em uma modalidade com financiamento fast track via FAPs [as fundações de amparo à pesquisa dos diversos estados] e via INCTs [Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia], ou seja, todos entenderam que não temos tempo a perder, afirmou Zanotto. Se ao final da experiência o saldo for positivo, avaliou o professor do ICB-USP, pode surgir uma nova modalidade na indução de ciência no Brasil: um modelo fast track para casos emergenciais, acelerando processos de pesquisa e desenvolvimento Quando temos problemas exponenciais, as respostas têm que ser exponenciais. E isso começou a ser bem entendido pelos gestores de ciência e saúde no Brasil, disse. Esse e outros temas relacionados aos crescentes casos de Zika e de microcefalia no Brasil foram comentados por Zanotto em entrevista à Agência FAPESP. Agência FAPESP Quais temas de pesquisa foram definidos como prioritários pela Rede Zika? Paolo Zanotto Temos uma visão parecida com a da União Europeia e do National Institutes of Health [NIH, principal órgão de pesquisa dos Estados Unidos]: o ponto crucial neste momento é criar ferramentas para diagnóstico rápido, capazes de discriminar o vírus Zika de outros arbovírus, como o da dengue. A parte de ácidos nucleicos [exames do tipo PCR, que identificam o DNA viral no sangue e servem para a fase aguda] está muito bem desenvolvida, mas precisamos de diagnósticos sorológicos [que identificam anticorpos contra o vírus mesmo após a fase aguda]. A segunda questão é entender essa relação do vírus com a microcefalia. São os dois temas fundamentais do ponto de vista da urgência. Depois há outros aspectos também importantes, como o desenvolvimento de uma vacina, estudos de entomologia, para entender a genética do mosquito e sua capacidade de infectar as pessoas. E tem a parte de controle biológico associado à entomologia. A BR3, uma empresa do Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec) da USP, vem trabalhando com o Bacillus thuringiensis (BTI), uma bactéria cujo esporo acumula quatro toxinas letais para o Aedes. Isso é conhecido desde os anos 1980, mas o grande problema era como fazer o esporo sobreviver no ambiente. A BR3 criou uma estrutura chamada bio-oca. É uma pastilha que quando jogada na água vai para o fundo do criadouro e forma uma espécie de iglu, que aos poucos libera os esporos. Com a quantidade correta de pastilhas, cerca de 50% das larvas do mosquito morrem nas primeiras cinco horas e, depois, o nível de letalidade de 100% é mantido por 120 dias. Mas a questão do controle biológico, inclusive a produção de mosquitos transgênicos, enfrenta um problema de escalonamento. Ainda não há capacidade de produzir o material em quantidade elevada para atender a demanda. Outra parte importante do trabalho da rede é acompanhar o espalhamento do vírus. Pretendemos isolar os vírus circulantes, sequenciar e depois estudar a distância evolutiva entre eles em uma árvore de família para saber de onde vêm. Tem ainda a parte de genética humana: investigar fatores que podem influenciar na gravidade da doença. E a última tarefa, que é crucial do ponto de vista de saúde pública, é o acompanhamento de coortes de caso-controle, ou seja, no momento em que é confirmada uma gestação, fazemos o teste para o vírus Zika e continuamos acompanhando a mãe e o feto para ver o que acontece. Isso está sendo feito em Jundiaí, São José do Rio Preto, Ribeirão Preto e aqui em São Paulo. À medida que alguma das gestantes é infectada, muda a forma de seguimento. Depois que tiver ocorrido alguns ciclos completos de gravidez nessas populações vamos começar a entender, por exemplo, qual é o risco de uma mãe infectada por Zika ter um filho com microcefalia. Pode haver influência genética ou de exposição a outros agentes durante a gravidez, outros vírus. Agência FAPESP A relação entre o vírus Zika e a microcefalia já está confirmada? Já se sabe como o vírus afeta o sistema nervoso? Zanotto O anúncio feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) sugeriu que o vírus é culpado até provado inocente. É um raciocínio extremamente racional, mas inverte a forma como a ciência funciona. Geralmente, tentamos estabelecer a relação causal para depois determinar o que acontece em nível do processo. O que estamos tentando fazer: pegar o vírus Zika, jogar no sistema animal e mostrar que só com a exposição ao vírus ocorre desenvolvimento de doença equivalente à microcefalia. Depois infectamos células do sistema nervoso e avaliamos se o vírus sozinho causa um determinado tipo de morte celular. Em seguida, vamos destrinchando o problema e entendendo qual é o papel do Zika no tecido. A ciência progride assim. Mas, numa situação de risco, a gente tem de inverter um pouco as coisas. Quando há um problema em que a vida das pessoas está em risco é preciso tomar uma decisão de ação, assumir que o vírus é culpado até provado inocente. Há uma superposição espaço-temporal muito boa entre os casos da doença e, em seguida, os casos de microcefalia, tanto na Polinésia Francesa como no Brasil. No entanto, a presença do Zika no cérebro de um feto com microcefalia, abortado, foi demonstrada. Agência FAPESP A visibilidade que essa questão dá aos atores envolvidos propicia uma projeção internacional à pesquisa brasileira? Zanotto Há duas maneiras de medir esse avanço. Uma é a produção científica, que depende de acesso a materiais e recursos, inclusive físicos, para desenvolver os trabalhos. Há dificuldades, mas estamos nos organizando. A Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] está auxiliando, facilitando a entrada de recursos e de materiais, como reagentes, que está funcionando bem. Temos um potencial enorme de geração de ciência no Estado de São Paulo. Por outro lado, tem um segundo componente crucial, que é o controle da epidemia. O fato de estarmos gerando esses dois componentes, conhecimento científico e controle, é importante. O Brasil vai dar uma grande contribuição, até porque é aqui que temos a maior quantidade de casos. Percebo, atualmente, pelas várias propostas que estão surgindo, as modalidades de interação, de financiamento da comunidade europeia, financiamento no NIH, que estão levando em consideração esse aspecto de que eles têm parceiros aqui, o que é muito bom para todos. No nosso caso, a postura é a de parceria, colaboração. A comunidade científica brasileira é desenvolvida e tem capacidade de lidar bem com isso, dadas as circunstâncias de uma boa estrutura, com a academia funcionando, bom financiamento, boas articulações entre as instituições para um trabalho em rede, e boas articulações internacionais, que são necessárias até pela velocidade de evolução de certas soluções fundamentais. Agência FAPESP O que tem sido feito para acelerar os estudos relacionados à epidemia de Zika? Zanotto Estamos acompanhando alguns casos de microcefalia em São Paulo e pretendemos desenvolver pesquisa básica totalmente inserida num contexto de utilidade pública quase que imediata. Qualquer coisa encontrada, potencialmente útil, deve ser disponibilizada, pois pode ter repercussão no diagnóstico, no acompanhamento das mães. Nesse sentido, a Capes viu o que a FAPESP fez ao aprovar rapidamente aditivos para projetos já vigentes, o que encurta muito a velocidade de indução, irrigando com recursos o que precisa ser irrigado, e está buscando agilizar o processo. O Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação acompanhou esse processo e quer fazer o mesmo em uma modalidade com financiamento via FAPs e INCTs, ou seja, todos entenderam que não temos tempo a perder. Se fôssemos fazer os trâmites nos prazos convencionais, não teríamos tempo. A Capes está atenta a isso e quer tentar uma modalidade de fast track. A FAPESP fez isso e causou uma reação em cadeia em outros agentes indutores da pesquisa no Brasil. Isso é muito importante, pois criou mecanismos de agilização. Se isso tudo funcionar e tivermos no final dessa experiência um resultado positivo, podemos estar criando uma nova modalidade de atuação na indução de ciência no Brasil. Porque quando temos problemas exponenciais, as respostas têm que ser exponenciais. E isso começou a ser bem entendido pelos gestores de ciência e saúde no Brasil. Assista a entrevista completa https://www.youtube.com/watch?v=4dQEDdHv_-4
(Fapesp)